sexta-feira, dezembro 29, 2006

MUITO ANTES DO QUE EU PENSAVA, SURGIU ISSO:

Observâncias

Desde a semana anterior ao Natal ele estava lá, no mesmo lugar. Dia após dia eu passava e mirava seus olhos de piedade. Seria agora? Alguma pergunta sobre? Nada.
Preferi não me pronunciar, poderia causar uma leve, súbita, falsa esperança... Se bem que até me interessava, afinal são seis reais no barbeiro da esquina de casa. Excelente investimento, em outro momento de finanças folgadas.
Seria a mesma? Procurei saber, buscando detalhes em comum. Algo diferenciado da embalagem que vi ontem? Nada. A mesma, a encalhada, aquela. Nenhum interesse humano, neste plano físico. Talvez se um vento, daqueles que surpreende a tudo, viesse num rompante e derrubasse o objeto lá embaixo, na vala imunda que era um rio há algum tempo, talvez assim ele comemorasse o interesse de algo ou alguém pelo que tinha em mãos. E saísse, sem vintém, mas vitorioso. Vitorioso contra si mesmo, num masoquismo explícito. Dando tapas na cara imbecil da falta de valor e prosperidade do homem comum à margem do que não bate à sua porta.
Ele sequer dizia algum pregão. Não mercava. Não falava das vantagens. Silêncio absoluto. Toda palavra calada muito mais necessária como pano de fundo à cena repetida. Todos os carros embaixo do viaduto buzinando a euforia da manhã apontada para o nada. Todos os precipícios, juntos, afunilados numa caixa de plástico contendo uma máquina de cortar cabelos fabricada numa sub-China qualquer. E ninguém queria! Resignado.
Mas ali, febril. As faíscas lhe correndo as veias. O sangue renovado de agonia a cada olhar. De onde eu vejo, do ângulo trágico e cru da impiedade poética, me vale de munição cosmopolita para tentar vingar a dor do homem reduzido ao pó do caos. Metralho o mundo ao meu redor com essa falta de pudor verbal. Irmano-me ao homem que tenta vender uma mesma máquina de cortar cabelos há três semanas e não consegue.
Pelo menos para mim, ele guarda um silêncio direcionado, exclusivo. Deve saber que ando indignado. Por ele e por cada um feito ele, apenas diferente no objeto que vende. A vida não quer comprar. O mundo não aceita. Passo por ele e naquele instante comungamos de uma angústia dividida. Ele me agradece por não comprar sua máquina. Eu o agradeço por me dar fôlego à escrita. E caminho, sem olhar para trás, e agora que a alma me dói tanto espero que o próximo tenha levado a máquina pra casa. E por um precinho nada camarada.

2 comentários:

  1. Anônimo5:29 AM

    IRADOOO , aprendi a ouvir a arte que vc faz de um modo simples, de sua simplicidade aprendi a gostar de sua musica, grande musica, grande compositor, continue .... ta bom demais !!!

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  2. Anônimo3:46 PM

    Puxa, gostei milhões dessa sua nova(?) vertente literária! Um verdadeiro camaleão na arte do bem-dizer as emoções d'alma!

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